Ressucitação com acidente cerebral

Falamos da antiga discussão que sempre existiu entre a atração comercial e a liberdade criativa, seja na música, no cinema, nos quadrinhos ou em qualquer outra forma de entretenimento de massa. No caso de ER, o espectador notou que tudo o que estava "errado" ou que era "feio" ou inconveniente foi consertado de alguma forma, em três ou quatro capítulos? Agora, é tudo só alegria! Conseqüências do horrível tiroteio no fim da temporada anterior? Quase nada, a não ser a "parte boa"!
A gravidez de Abby e Luka era de risco, mas ela e o bebê já estão bem - drama só pra ocupar capítulos e resultado com família feliz. A louca mãe dela aparece de novo, mas só ajuda e vai embora sem atrapalhar. Kerry Weaver carregava uma deficiência física desde sua primeira aparição há doze anos e, de repente, por uma cirurgia milagrosa, não manca mais.


Nem mesmo os longínquos primeiros capítulos da série, carregados de "drama glamuroso", chegaram a esse grau de prostituição em nome da descomplicação geral. A enfermeira linda que tenta o suicídio por amor (Julianna Margulies), o médico bonitão que a salva (George Clooney), o chefe correto (William H. Macy) que passa a bandeira para o outro chefe correto (Anthony Edwards), o estudante-galã inseguro que rala, mas se dá muito bem (Carter), tudo isso sempre caminhou para o lado complicado e fez a fama da série, que então explodiu para o mundo como "inovadora" - inclusive no Brasil, com o patético nome de Plantão Médico.
Depois de umas duas temporadas realmente muito enfadonhas há algum tempo, ER vinha no caminho de uma reabilitação digna. Os últimos anos consolidaram alguns personagens e buscaram mais estabilidade nas tramas, mais seriedade de roteiro. Então, quando tudo parecia entrar nos eixos lentamente, alguém "lá de cima" resolveu que não ia mais esperar os resultados e enfiou o desfibrilador no peito da narrativa. Saiu-se com esse monte de soluções "de bolso" para tornar a série um novo atrativo para adolescentes ávidos por triângulos amorosos fáceis, alívios cômicos, tiradas pseudo-espertas (aumentaram muito!), personagens mais rasos e descomplicados e outros elementos de pura fotonovela.

Até a antiga e altamente reconhecível trilha de abertura foi eliminada, também com vistas a mudar radicalmente a identidade da série - ainda que os produtores aleguem que ela "tomava tempo demais", mesmo depois de 12 temporadas sem perceberem isso. Parece que ainda não se decidiram por uma nova, já que agora é só um monte de barulhinhos sem graça. Por falar em música, o que foi aquela história de citar nominalmente um Sérgio Mendes da moda, ainda mais empurrando pela garganta do público e, em especial, dos adolescentes, aquela história tão falsa de "eu achava que era brega, mas esse novo disco é muito bacana"?? A propósito, o novo trabalho do quase-brasileiro é péssimo, mas ele vem sendo incensado por trabalhar com gente muito ruim que infelizmente está na moda. Não se engane fácil assim.
O esperado seria que os produtores continuassem no caminho em que vinham, e apenas se empenhassem em criar histórias mais inteligentes, como já vinha ocorrendo (fora mais um tiroteio no hospital). Ou então, dada a aproximação de alguns "funis" de personagens, tudo poderia ter descambado geral como em temporadas anteriores e precisaríamos de gente nova, mas no velho esquema. Havia ainda a possibilidade de continuarem pegando pesado naquela coisa toda de responsabilidade social e, quem sabe, partir para um caminho mais West Wing, de "patrimônio televisivo". E, claro, sempre há espaço para reformulações inteligentes que não precisam se basear num sucesso de audiência cuja identidade é bastante diferente. No fim, escolheram o lado fácil de uma quase cópia. Só que os fãs já têm uma bobagem irreal como entretenimento e não precisam de "Grey's Anatomy, volume II".

Vamos ver como isso se desenrola, mas torcemos por uma recuperação integral da série como nós a conhecemos, sem seqüelas politicamente corretas, passagem pela UTI ou "Meu nome é ER e eu sou uma série prostituída".
