Serial Frila: O zen e a edição da realidade

17 janeiro 2006

O zen e a edição da realidade

(publicado originalmente em 17 de janeiro de 2006)
(revisado e republicado aqui em 24 de novembro de 2006)


Não sou um fã de reality shows no geral, mas às vezes assisto a algumas coisas que costumam ser encaixadas nessa categoria (por falta de outra melhor). Mas gosto dos programas que narram histórias, meio como uma ficção faria, ou transformam a vida das pessoas em algo melhor. O que não dá pra ver são os shows de competição entre tapados... Esses estão mais "além do alcance" que visão de Thundercat.

This picture is hosted by ImageShackNão sei se o leitor já percebeu isso também, mas dá pra fazer uma certa distinção esses dois tipos: a série de "realidade" e a série de competição vazia. Pra efeito deste texto aqui, vamos dar nomes diferentes a elas. As primeiras serão os "programas reais" e as segundas, os "programas de competição".

Os "programas reais" às vezes despertam interesse, seja pelas dicas, pelas curiosidades, pela trajetória dos não-personagens ou até uma certa visão sócio-cultural diferente e importante de ser notada. Nessa condição, entram, por exemplo, Extreme Makeover, Queer Eye, Blow Out, programas ingleses malucos do People&Arts e outros semelhantes. Nos outros, zero de conteúdo, zero de entretenimento, zero de talento e muito tempo perdido em coisas como Survivor, American Idol, America's Next Top Model, The Bachelor ou o programa conhecido dentro da minha cabeça como "Bela Bosta Brejão", que estreou sua edição 2006 há pouco (fãs da pseudo-música do TVZ, não percam!). Participantes entram ali com o único objetivo de comprovar como o ser humano pode ser obtuso numa gincaninha desinteressante que dura dias ou meses. Vamos esquecer essa categoria (ou falta de). Nosso interesse não é fazer mais uma coluna de TV descendo o malho nesse tipo de coisa.

Nos "programas reais", dá uma sensação boa ver a vida de alguém transformada em algo melhor. É por isso que comédias românticas e contos de fada dão certo em filmes e devem continuar na área durante um bom tempo. É também o motivo de você jogar na Mega-Sena toda semana. Não precisa de tanta razão pra gente querer ver, basta a esperança de final feliz. Já nos casos em que não há transformação, só narração, o desenrolar da "história" não parece assim tão diferente do de uma série de ficção sem roteiro e sem o direcionamento que os roteiristas viriam impôr pra manter nosso interesse. Então, como manter o espectador na frente da TV? Não se engane: pode não haver script, mas em qualquer programa dessa natureza há direcionamento, e ele é tão pesado quanto o de um roteiro.

This picture is hosted by ImageShackExistem recursos que levam o conteúdo exibido a ser algo diferente da realidade esperada. Afinal, mesmo sendo do agrado, é muito difícil que uma série espontânea demais tenha sucesso sem os dedos de algum mestre dos bonecos. O mais rasteiro desses recursos é bem perceptível nos "programas de competição": criar uma falsa realidade e enfiar ali a humanidade das pessoas (já alterada pela própria presença na TV), vendendo o produto final como se fosse muito autêntico. Ótimo exemplo é o estupidamente falso The Swan, que misturou as duas categorias, tentou agradar todo mundo e acabou passando do ponto. Pegando os piores aspectos de Extreme Makeover numa cópia-frankenstein, o programa criou mulheres horrorosas de plástico (o que me lembra das "Plastics", do bom filme Mean Girls), juntou uma equipe de profissionais canastrões coesa por ocasião e sem brilho algum, uma estrutura cafona até a tampa, uma apresentadora britânica para dar um falso ar de sofisticação e caminhou com tudo para... mais uma maldita competição! As mulheres ficam distorcidas e ainda têm de ser lembradas no final de que elas continuam não sendo suficientemente bonitas. Maravilha. Essa desgraça ainda rendeu uma segunda temporada e a terceira está em pré-produção.

This picture is hosted by ImageShackO direcionamento mais utilizado nessas ocasiões, entretanto, é um tanto sutil e ludibria o espectador médio quase sem deixar vestígios. Trata-se da edição. Comumente, esse recurso é associado à técnica da poda na ilha de edição de vídeo, o momento em que cenas entram e cenas caem. Mas a edição é algo muito maior, um verdadeiro estado de espírito. Além da mera técnica de enxugamento e montagem, representa também censura disfarçada, pensamentos (e preconceitos) de diretor, políticas de empresa, moral vigente e mais uma porrada de coisas que não estão nos timecodes e arquivos digitais, mas na cabeça dos envolvidos, interessados em pôr na sua frente uma realidade que não é bem assim. O processo de edição é a verdadeira Matrix da TV.

Como eu disse, não vou entrar hoje no mérito dos reality shows competitivos, que precisam de heróis e vilões e efetivamente os fabricam dessa forma (a despeito das óbvias declarações contrárias dos criadores). Vamos ficar só nos "programas reais", que vendem reações como verdadeiras e situações como possíveis. Aliás, por tudo o que está escrito até aqui, acho que é melhor já concluir de antemão que a minha distinção anterior não vale nada. Na verdade, não existem verdadeiros reality shows - ou "programas reais" ou o que seja... Vamos reunir tudo de novo sob uma nova categoria, o "fake show".

Em um "fake show", a vida é levada em potenciação. Tudo é ao quadrado ou ao cubo. Por exemplo, enquanto aqui fora esse papo hipócrita de "não julgueis" nunca valeu, lá todo mundo julga todo mundo o tempo todo porque todo mundo é suspeito de tudo o tempo todo. Há sempre uma tensão estúpida no ar, no melhor estilo de filme de suspense classe C. Os envolvidos sabem o que se passa e o que vai acontecer, mas algo impede as pessoas de dizer as palavras certas e pensar com a cabeça. É tudo como a gente conhece normalmente, mas extremado. A edição vem exatamente privilegiar e valorizar artificialmente essas situações e acontecimentos corriqueiros, destacar o conflito trivial, condenar alguém à berlinda por algum errinho besta. Não há realidade alguma que não tenha o viés desejado. Existe uma palavra perigosa que não deve ser usada em jornalismo porque muito raramente vai caber com propriedade, mas nesses programas não-jornalísticos, a ordem é manipulação mesmo, não tenha dúvida. Cá entre nós: você acredita em reality show?

This picture is hosted by ImageShackEntra Blow Out. Apesar de assistir uma vez ou outra com certa simpatia, resolvi apelidar o programa como "o fake show por excelência", junto com tal do America's Top Model, que é impossível de se ver. Tudo ali sempre parece combinado e artificial, os diálogos, as situações, as personalidades do povo, as reações - tudo. Aquele pessoal já é bem esquisito de verdade, e então a edição cuida de tornar a esquisitice uma coisa ainda mais próxima de ficção com personagens.

Por um momento, pense que você é um CSI e busque a evidência onde aparentemente não há nada. A melhor forma de detectar a edição sacana de Blow Out é pelas chamadas entre o fim de um bloco e o começo do outro. Em 95% dos casos, mostra-se uma tensão de algum tipo, com uma música de fundo algo dramática e uma colagem rápida de cenas fora de contexto. Quando entra o bloco seguinte, você percebe que aquela situação e as reações que a envolviam eram bastante diferentes do que esperado. E o pior é que o que é mostrado também sofre uma edição deslavada, de modo a concentrar o máximo de dramaticidade no menor tempo.

Quanto ao "elenco", ele é perfeito para um show do tipo. Os egos envolvidos são monumentais e as personalidades são mais falsas que anúncio de remédio via spam; a água de Hollywood deve estar contaminada e esses americanos são todos uns loucos! Digo, aquele povo que está na TV tem botox na alma, só pode ser... É impressionante a incapacidade dos cabeleireiros, assistentes e afins de expressar alguma emoção verdadeira. As únicas situações possíveis ali são as seguintes: ou o sujeito se expressa de forma esfuziante e na verdade não sente nada (e a falsidade fica evidente) ou então acontece algo que desperta uma reação interna até forte, mas essa reação nunca é expressa.

É uma gente tão absurda que acaba ficando divertido. Por que é que, quando algo meio estranho acontece, eles ficam se encarando de uma maneira desconfortável, ao invés de tentarem se comunicar, dizer algo, resolver a situação? Vivem criando climas desnecessários onde não deveria haver qualquer problema. Todos cobram profissionalismo uns dos outros, mas defendem sua busanfa a todo custo e, quando os colegas ou clientes viram as costas, detonam uns aos outros sem dó. Beleza de profissionalismo. Eu devo estar desacostumado com o mercado de trabalho atual...

This picture is hosted by ImageShackO patrão Jonathan Antin (que participou dos primeiros Extreme Makeover como o cabeleireiro que dava jeito nos participantes) é um ótimo exemplo do "comportamento botox". O sujeito realiza um dos maiores sonhos da vida dele ao criar uma linha de cosméticos em escala industrial. Recebe a notícia e não comemora, não sai pulando, não faz coisa nenhuma. Liga pra irmã, informa como quem diz "Olha que bom, achei uma nota de 10 na rua" e é a irmã que enlouquece um pouco - talvez ela devesse estar no show. O cara dá uma chorada que não enche uma tampinha, fala (só com a boca) que está muito emocionado, não altera a expressão, se esforça pra não deixar ninguém perceber que a coisa é grande... e pronto, é isso. É o momento mais emocionante da vida do sujeito. E isso tudo sem mencionar que, no processo, ele conseguiu "brigar sem brigar", sem razão nenhuma, com o mané que concretizou tal sonho. E conseguiu não se emocionar com mais uma pá de coisas profissionais e pessoais.

This picture is hosted by ImageShackÉ bem mais interessante quando, num Extreme Makeover, por exemplo, a família chora, o participante dá pulos de alegria e você vê que até os profissionais envolvidos gostaram de estar ali. Nós damos a eles o benefício da dúvida, porque os resultados parecem verdadeiros, mas, sim, há atuação e há edição forte também. Ela só não procura criar a falsidade excessiva de outros títulos, já que todo mundo sabe mais ou menos como vai ser o final do programa.

Repare nos créditos (muito rápidos) no fim de Extreme Makeover. Em todos (além do nome de um blur que não é o blur e de um John Byrne que não é quadrinista), há o nome de um profissional de psicologia, mas nem me lembro da última vez em que isso foi mostrado durante o programa. A palavra de ordem é minimizar esse impacto na edição. Todo mundo fica feliz, tudo é perfeito, happy, happy, joy, joy. Você já se perguntou alguma vez se todos os participantes convocados tiveram êxito e foram ao ar? Se ninguém surtou durante a recuperação?

This picture is hosted by ImageShackMais coisa: por que algumas declarações dos participantes parecem perfeitas? Porque são escritas assim. E por que, na hora de experimentar roupas, todos aparecem dançando de um jeito exagerado e igual? É como a produção exige. Por que é que andar em grupo na rua significa sempre fazer aquele joguinho besta de pernas? Porque fica bonitinho no vídeo e a produção do programa sabe disso! Oh, a revelação: Extreme Makeover tem um roteiro básico a ser seguido à risca; não é exatamente um programa "sem roteiro", como os reality shows são muitas vezes chamados lá fora.

Há muita maquiagem pra que a gente veja só o que eles querem mostrar. Basta comparar a primeira e a segunda temporadas. Antes, não havia "Extreme Mansion" (eram hotéis e resorts) ou "Extreme Team" (bom, não havia o nome, e os envolvidos continuam variando). Nem sempre tínhamos um apresentador ou cenários fixos. A coisa toda era mais informal e natural, com foco nos progressos alcançados. Os profissionais não eram necessariamente tratados como estrelinhas de TV, mas como os luminares que realmente são em suas áreas, e mudavam segundo a necessidade. Além disso, sempre houve uma distorção de resultados monstruosa pra que a pessoa seja apresentada "perfeita" no fim, esteja ela como estiver por trás dos tapumes - e dificilmente ela estaria tão bem azeitada quanto mostram.

Acabou tudo transformado em espetáculo, mas vamos encarar: os primeiros capítulos, comparados com os atuais, eram bem sem graça, sem formato. Essa coisa de "maquiar resultados" não teria como não existir... E continua sendo bem legal ver como a vida das pessoas pode mesmo mudar com aquilo. Se muda ou não, só saberemos lendo entrevistas "por fora" ou esperando algum livro "revelador" sobre os bastidores das coisas, daqui a uns anos.

This picture is hosted by ImageShackNesse aspecto da transformação, talvez Queer Eye For The Straight Guy talvez seja o mais interessante de se ver. Com certeza é o mais bem-sucedido, a ponto de ter despertado tanto impacto social com a onda "metrossexual". Com uma abordagem original dentro do formato, a edição desse programa não necessariamente destrói sua credibilidade, mas contribui. Tudo bem, a casa da "vítima" algumas vezes parece zoneada demais, como se tivesse sido preparada pra parecer pior do que é, mas... Sei não... Eu não duvido que alguns indivíduos sem noções de conforto realmente vivam em chiqueiros daquele porte. E é claro que existe uma equipe enorme de gente que nunca aparece, comandada pelos Fab Five, mas aí nem é uma questão de edição, e sim de formato. Cinco principais, o "convidado" e seus eventuais coadjuvantes são suficientes.

Depois da avaliação inicial do candidato é que o programa se mostra. Não dá pra negar que as transformações - de certa forma, até bem simples - enriquecem a programação. As dicas são no mínimo curiosas e os cinco apresentadores são engraçados e parecem quase sempre autênticos. Na verdade, acho até que eles se seguram um pouco em autenticidade, pra não causar constrangimento nos mais conservadores - é quando entra a famosa edição. É importante notar que uma das maiores razões do sucesso do programa está aí: são cinco gays que não precisam chocar pelos estereótipos homossexuais negativos de sempre, mas que impressionam sim pela sofisticação, pela inteligência, pelo papel de verdadeiros anjos-da-guarda dos desmazelados. Veja você, dos mais sensíveis aos mais homofóbicos, passando por motoqueiros, hippies e fratboys descerebrados, todos os caras acabam tirando coisas boas da experiência.

Outro ponto para o Fab Five: alguém teve a idéia de usar a mordácia naturalmente identificada com os gays (também um estereótipo) como algo positivo. A questão da edição também entraria aí, se tivessem resolvido limar os comentários mais ácidos. Ao invés disso, na segunda etapa do programa, os cinco se reúnem para avaliar os progressos do candidato e desfilam comentários hilários e pertinentes, muitas vezes pesados e sem censura mesmo, sobre o camarada, a casa dele, a roupa, a comida, a namorada, a família...

This picture is hosted by ImageShackQue pesem dois fatos: Queer Eye é produção de um canal a cabo, e não da TV aberta americana. A auto-censura é menor e a liberdade criativa é bem maior nesses casos. O segundo é que o canal em questão é o Bravo, um canal cujo princípio maior é voltar-se à diversidade cultural - e, por extensão, à maior aceitação sexual. Outros programas da emissora têm temática gay, e isso tudo mostra por que Queer Eye é uma espécie de exceção que deu mais certo que os demais reality-fake-shows.

Onde não há medo da verdade, não há necessidade de ocultá-la sob edição tendenciosa. Mais sobre reality shows, direcionamento de séries, censura e outros assuntos afins nas próximas colunas. Por enquanto, só uma pergunta: o nosso velho amigo Warner Channel jogar The L Word para o ingrato horário atual (de sábado pra domingo), sem reprises ou chamadas, é também uma forma de censura ou só mais um dos péssimos e surrados warnerismos?
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