Serial Frila: É poda!

09 fevereiro 2006

É poda!

(publicado originalmente em 9 de fevereiro de 2006)
(revisado e republicado aqui em 25 de outubro de 2006)


A coluna da semana nasce de um feedback de um leitor. Aliás, é a primeira vez que falo disso e devo dizer que os comentários têm sido excelentes (elogiosos ou não), mantendo o nível da "conversa", sem os habituais adolescentes escrevendo palavrões gratuitos em caixa alta e defendendo bobagens sem argumento. Obrigado!

This picture is hosted by ImageShackO comentário em questão foi feito com relação à série Sex And The City, antes exibida pelo canal Multishow e hoje reprisada exaustivamente pela Fox, segundo contou o leitor. Curiosamente, ele pergunta se não deveria haver censura nos episódios que são reexibidos muito cedo e com todas aquelas insinuações de sexo (na verdade, estão mais para demonstrações, mesmo) e demais situações, digamos, íntimas. Deixo claro que ele pergunta, e não necessariamente pede que haja.

Enviei meu comentário, mas aproveito este espaço de coluna para estender o assunto, porque ele continua presente nas atitudes das redes e nas cabeças de quase todo mundo, contra ou a favor. Aliás, censura vai ser sempre um assunto pertinente, pelas mesmas razões que mencionei na coluna sobre edição em reality shows. A democracia e a "permissão" para pessoas diferentes pensarem livremente leva tanto a resultados positivos quanto a negativos - e daí a abusos de liberdade e abusos de censura.

Não tenho acompanhado Sex And The City na Fox porque sou humano e há vida fora da TV, né? Depois de assistir a boa parte da coisa no Multishow, nem sei em que horário passa na Fox. Mas sou partidário de que, seja na hora do almoço, no sábado de manhã ou de madrugada (tudo depende de bom senso da emissora), cortes em obras de cultura ou de arte, em qualquer acepção dessas palavras, sempre foram e sempre serão ofensas muito maiores do que o que foi cortado, tanto para o espectador quanto (e principalmente) para os profissionais que se empenharam para construir a obra ora mutilada. Transcende em quantidade - imagine o número de censurados e descontentes e o de "reais beneficiados" (nenhum) pela poda - e em qualidade - humilham profissionais publicamente em troca de nada e oferecem uma obra porca, incompleta.

This picture is hosted by ImageShackModeração na forma de autocrítica e bom-senso sempre são proveitosos, mas a censura por excesso de zelo é um veneno que deve ser erradicado sem dó, porque é algo sem controle. Uma vez que se permite um precedente, não se sabe o que virá depois. É como a pena de morte: todo mundo acha - eu incluído - que determinados indivíduos ficariam melhores "em outro lugar", mas graças a Deus que não sou eu ou você que decidimos. Afinal, não é por acaso que a censura se identifica com os setores mais conservadores e cegos da sociedade. Veja o caso da estréia de Friends na China, que vive sob uma ditadura ferrenha. Os censores não sabiam o que fazer para exibir a série, porque "ela fala de sexo o tempo todo", segundo alegaram. Você certamente não gostaria de ver Friends depois de passar pela mão de alguém que tem essa óptica, certo? Nem eu. E ela nem seria Friends, com toda certeza!

Se hoje cortam uma obra fechada e acabada como Sex and the City em nome de alguma "moral" (qual delas?) ou "decência" (idem) ou "integridade" (de quê??) ou "valores religiosos" (absolutamente parciais), talvez amanhã seja a hora dos "gays indecentes" de Will & Grace ou Queer Eye. Ou quem sabe não condenar Supernatural, já que ela "pregaria o paganismo", ou Medium, já que "cristãos não acreditam em mediunidade", ou qualquer absurdo assim? O passo seguinte seria impedir Jack Bauer de usar ou sofrer violência em 24. Teríamos "24 Horas com a Turma de Moranguinho contra o Bobo, Feio e Mau Baixador de Música da Internet"...

This picture is hosted by ImageShackPor falar em 24 Horas, acaba de ser divulgado que a Globo se surpreendeu com a audiência de Lost, em sua estréia no último domingo. Isso não a impediu e não a impedirá de fazer exatamente o que fez com 24 em todas as temporadas que exibiu: cortar partes que ela, Globo, considerou "inúteis", "desnecessárias" ou, quem sabe, "ofensivas". Pergunto: você queria mesmo ver Lost e ficou no aguardo? Então, vai ter de pegar na locadora, porque a Globo está exibindo só o que ela quer, exatamente como fez com 24.

Isso simplesmente não se justifica e não se sustenta sob argumento algum (vide centenas de comentários de espectadores nada satisfeitos, como aqui). Na verdade, qualquer pseudo-explicação desaba por completo quando consideramos que as séries deram e vêm dando mais audiência do que o débil mental arrogante e sem graça chamado Jô Soares, o qual elas vêem substituir enquanto o apresentador está de férias. Num mundo sem censura, sem sacanagem e com uma autocrítica razoável, a Globo tiraria esse entojo do ar e poderia deixar o horário, por exemplo, para exibir na íntegra algumas boas séries por ano (e legendadas, mas aí é querer demais...). Material para isso não falta, a audiência já aprovou, haveria rotatividade no horário e o apresentador já deu o que tinha de dar há muitíssimo tempo, depois de anos grudando nas pessoas, liberando perdigotos, fingindo rir de piadas horríveis, interrompendo entrevistados, soltando comentários agressivos de ostentação intelectual e copiando muito mal o David Letterman em tudo o que pode e pôde.

Pelo jeito, a Globo não aprendeu (e nunca vai, não se iluda) com os protestos dos espectadores de 24 Horas nos anos anteriores e com a controvérsia que causou ao impedir o beijo gay no fim de uma novela recente (nem me pergunte qual).

This picture is hosted by ImageShackA coisa ainda pode se apresentar em sabores diferentes. O sempre esplendoroso canal Warner, por exemplo, nos traz outro, ao proibir a série The L Word de ser exibida em horário razoável e de ter propagandas veiculadas. Qual a razão disso? A equatoriana "Invasión" também só passa em um horário por semana, às 22h (perguntem ao canal o porquê disso, pois só ele sabe), e mesmo assim tem propagandas constantes. Qual seria a desculpa para enterrar The L Word, que é uma boa série, era exibida em horário compatível com seu teor (23h de domingo), tem público cativo, acaba de ser renovada para uma quarta temporada e, no começo, mostrava um ou outro lance por episódio e hoje nem isso? Alguns dirão que "pelo menos, a série continua sendo exibida". Seria um pensamento razoável, mas... alguém sabe disso? Afinal, a Warner censurou até suas (tradicionalmente péssimas) propagandas! Antes procurassem dar alguma chamada ocasional para a série, ao invés de "Lilí (sic) pega bandidos que aprontam demais da conta (sic)". Para a Warner, praticar homicídio ou estupro em Cold Case é "aprontar demais da conta". Autocrítica zero!

Vamos prestar um serviço um pouco melhor que o do canal e dizer claramente: The L Word tem sido exibida de sábado pra domingo, à 0h30 (e ainda varia), com todos os episódios da primeira temporada, que recentemente entrou em reprise de novo. Sabe do pior? Temos informações de que a série foi mutilada para exibição na Warner. Dupla, tripla, quádrupla censura... E nada de segunda temporada por aqui, nem em anúncio.

A auto-censura que se propõe implantar tacitamente nos canais - na verdade, uma regulamentação do bom senso, uma autocrítica saudável como a que finalmente jogou João Kléber na rua tarde demais - está muito mais em discussão para a TV aberta do que para o cabo. No cabo americano, por exemplo, é tudo muito mais liberal, porque assina quem quer, a oferta de pacotes é grande e a base de assinantes é, teoricamente, mais esclarecida e saberia lidar melhor com aspectos considerados polêmicos - sexo, fama, política, religião ou a própria metalinguagem televisiva. Veja a liberdade criativa das séries da HBO, por exemplo (e Sex and the City é uma delas). Enquanto isso, um canal a cabo brasileiro (que é ainda mais exclusivo) apresenta esse tipo de comportamento como se fosse um canal aberto com audiência e público de novela. Sim, senhores, estamos diante de mais um caso de warnerismo brabo!

Mas há casos em que a situação pode piorar bastante, quando o assunto que consideram "delicado" faz parte da essência da coisa. Por exemplo, imagine que fôssemos censurar Sex and the City e tudo o que haveria de "indecente" por ali. A série tem a palavra "sexo" no próprio nome! Como evitar que fale sobre isso e ocasionalmente mostre alguma coisa "a mais"? É o próprio conceito, não há como evitar... Além disso, dificilmente aparecia algo ali tão frontal assim com relação a apelações. Tinha insinuações aos milhares, muitas delas bem fortes, mas as cenas mais "gráficas", como dizem lá fora, mostravam um seio aqui, uma bunda ali e costumava ficar nisso mesmo. Corte qualquer parte disso e a própria compreensão do capítulo vai ficar comprometida. Se os pais ficarem preocupados com a questão dos diálogos, tudo se resolve com um conselho, uma proibição em casa, uma conversa, uma configuração do conversor de cabo ou várias outras alternativas. Em casos assim, o problema está no sujeito, não no objeto...

This picture is hosted by ImageShackQuando essa questão da essência chega ao canal como um todo, temos o TNT. Já comentei por aqui que séries como Veronica Mars ou Battlestar Galactica não serão discutidas neste espaço, pela razão mais simples do mundo: elas não são assistidas por quem escreve. O canal tem por tradição ("família e propriedade") destruir filmes de quaisquer gêneros, retirando cenas de violência, drogas, sexo, religião e palavreado chulo, não importa quantos minutos de corte isso represente ou quanto da compreensão do filme isso comprometa. Exibe uma vinheta de "recomendação" no começo dos filmes, mas elas de nada servem: o próprio canal se encarrega de tornar os filmes "apropriados para todas as idades"! Por exemplo, quando por milagre resolveu exibir o filme Matrix legendado, com o som original, chegou ao completo desplante de censurar diálogos em inglês, emudecendo qualquer "damn" ou "shit" que fosse pronunciado pelos atores. De repente, o som sumia, não havia legenda e a gente tinha de achar isso natural!

Desde então, nada mais de TNT. Vou à locadora, pego o filme inteiro e legendado (sem a péssima dublagem habitual) e vejo o que eu quero ver, com o que vier. É o que o diretor quis mostrar, é o que os atores toparam fazer, é o roteiro conforme planejado e com seu sentido intrínseco, sem intervenções de donos da verdade - e quem é algum diretorzinho de TV pra vir alterar uma obra? Me pergunto como foi que exibiram a cinebio The Doors, a vida altamente sexual e drogada de Jim Morrison, narrada por Oliver Stone e protagonizada por Val Kilmer. Deve ter durado 20 minutos de filme... This picture is hosted by ImageShack